'Dois anos de prostituição forçada e dois terremotos': adolescente relata drama
Vítima de tráfico sexual aos 11 anos, a nepalesa Emu Tamang* foi mantida trancada em um quarto por dez meses, sendo alimentada para crescer e parecer mais velha antes de ser oferecida a clientes.
Na Índia, teve que se submeter à prostituição por mais de um ano até ser resgatada por uma ONG.
Hoje com 18 anos, ela vive há quatro em uma casa do projeto Meninas dos Olhos de Deus, liderado pelo brasileiro Silvio Aparecido da Silva, em Katmandu. O projeto, que abriga meninas e meninos vítimas de tráfico de pessoas ou em situação de risco, é ligado à ONG Missão Cristã Mundial.
Recentemente, Tamang passou por outro revés: o Nepal foi atingido por dois terremotos de grande magnitude que destruíram seu vilarejo natal, onde ela tinha o sonho de trabalhar em uma escola.
Tamang perdeu um sobrinho de apenas um ano no terremoto, mas diz que é preciso superar a tragédia: "O passado já passou, quero ir em frente."
Leia abaixo trechos do depoimento dado por telefone, em inglês, de Katmandu, à BBC Brasil:
*nome fictício
***
"Sou de um distrito no Nepal, Nuwakot, em que há muito tráfico. Grande parte das meninas do meu vilarejo é traficada. Meu pai morreu quando eu tinha 7 anos e minha mãe se casou com outro homem, então eu morava com meu irmão. Não tinha pai na casa e, quando eu tinha 11 anos, pessoas do vilarejo tentaram casar comigo, mas eu não quis.
Os traficantes me procuraram dizendo que iam achar um bom trabalho para mim. Muitas 'irmãs' do vilarejo já haviam ido, e eles me perguntaram se eu queria ir para o mesmo lugar, se eu queria ser rica como elas. Muitas iam e voltavam com roupas e trazendo coisas para suas famílias.
Eu precisava do dinheiro para ajudar minha família, então eu concordei em ir. Me levaram para um lugar na Índia e foi muito difícil para mim.
Me colocaram em um quarto por oito dias. Eles não me davam comida nem cobertores e eu tinha que dormir no chão.
Depois me levaram para outro lugar, para as pessoas que me compraram.
Fui obrigada a ficar embaixo de uma cama, por oito dias. Eles só deixavam eu sair do quarto de manhã e de noite para ir ao banheiro.
Depois, os donos me levaram para outro lugar, um prédio alto, com cinco andares, e me colocaram no primeiro andar. Me deixaram lá por dez meses. Eu não podia sair e nem olhar pela janela. Eles trancavam meu quarto por fora.
Uma pessoa dava comida para nós. Acho que misturavam algo na comida para que eu crescesse para o trabalho.
Eu cresci. Em dez meses, parecia que eu tinha 17 anos. Mas eu tinha 11 anos e meio.
Depois de dez meses, uma moça do meu vilarejo veio e me levou para um hotel.
Lá tinha o gerente e umas meninas como eu. A tia que me levou disse para eu trocar de roupa e usar maquiagem. Ela falou: desce com as outras moças.
Tinha 6 ou 7 meninas e os clientes também vieram. O gerente falou para uma menina que já estava acostumada ensinar para a gente o trabalho.
Eu tinha ficado menstruada um pouco antes e fiquei com muita vergonha.
Eles me levaram para o quarto com o cliente e eu não queria, mas tive que trabalhar lá. A tia disse que eles já estavam cuidando de mim havia dez meses, me dando comida, e que eu tinha que pagar por tudo que comi e o que ela cuidou.
Então tive que aceitar ficar com o cliente.
O gerente nunca estava satisfeito. Tinha dias que a gente recebia dois clientes; tinha dias que recebia 10, 12. Mas ele sempre brigava.
Fiquei quase um ano nesse lugar e nunca deixavam eu chegar perto do portão.
Depois a gente aprendeu a língua do povo e nos levaram para outro lugar.
Levaram a gente escondido. Era sempre escondido. Diziam que eu não podia falar com a polícia, que estavam cuidando de mim e que assim que eu pagasse minha dívida eu ia poder voltar para o meu vilarejo. Mas, se a polícia me encontrasse, diziam que seria muito pior, que eles iam me prender e não iam me tratar bem.
Depois de um ano e meio, fui resgatada por uma ONG internacional.
Era um dia de tarde, quase de noite, e um grupo de clientes estrangeiros chegou. Quando apareciam estrangeiros eles chamavam todo mundo, porque sabiam que eles davam mais dinheiro.
Eles falaram que não tinham gostado das meninas e, de repente, entrou um outro grupo e resgatou todo mundo. Veio a polícia, desfez tudo e levou a gente num carro.
Fui para um abrigo e começou um processo: procuraram minha família, precisam saber se estão envolvidos ou não, tivemos que reconhecer os envolvidos... foram 22 meses até voltar para o Nepal.
Na volta, fui morar na casa do projeto Meninas dos Olhos de Deus. Moro aqui há quatro anos. Comecei a estudar e tenho o sonho de ensinar as pessoas do meu vilarejo. Espero que a nova geração tenha acesso à educação e, assim, não seja traficada.
Mas aí vieram os terremotos e destruíram tudo.
No primeiro, eu estava na igreja, que ficava no terceiro andar. Tudo começou a balançar, todo mundo saiu correndo. Peguei na mão das minhas amigas bem forte e oramos para que o terremoto parasse. E ele parou.
Mas eu perdi todos os meus sonhos. Meu vilarejo foi destruído, acabou. A escola em que meu pai trabalhava e que eu tinha o sonho de reabrir foi destruída, então não vou mais poder fazer isso.
Meu sobrinho morreu. Ele tinha um ano e meio e estava em casa, dormindo, e a casa caiu em cima dele.
Alguns dias penso: agora acabou tudo, acabou o mundo. O que vou fazer?
Tivemos que acampar na quadra da escola por precaução. Pouco depois que voltamos para casa, veio o segundo terremoto. Voltamos para a quadra da escola... Só nesta semana voltei para a minha casa.
Mas o passado já passou. Não há nada que eu possa fazer. Agora, quero ir em frente."