Quantas palhaças você já viu? E quantas eram negras? A artista Ana Luíza Bellacosta percebe que não há muitas como ela; por isso, entende a importância desse trabalho. Mulher, negra, deficiente física e há quase 20 anos se dedicando à arte da palhaçaria, Ana Luiza acredita que a consciência negra é necessária em todos os momentos do ano. Ela conclui as apresentações com debate sobre o protagonismo negro no circo e no teatro. “A palhaçaria é muito heteronormativa. E todos sabemos que a mulher negra está à margem da sociedade”, afirma. “O meu corpo é político por si só. Ver uma palhaça negra é muito significativo, mas o meu discurso não é panfletário, são pinceladas. Tira um pouco desse imaginário social sobre o negro cômico”, completa.
Para Ana Luíza, é importante refletir sobre a posição de cada um dentro da sociedade. “É para lembrar que o nosso país foi todo construído em uma hegemonia branca e em cima do lombo de um povo”, destaca. Segundo a artista, é perceptível a dificuldade de vários palhaços negros, que não estão presentes nos festivais. “É um reflexo do nosso país racista. A curadoria é branca. Os negros, quando se inscrevem, são mais julgados ainda, porque precisam ser muito bons. Às vezes, em festivais, só tem eu. A gente não consegue resolver o problema se não admitir que ele existe”, ressalta.
O importante, de acordo com Ana Luiza, é o entendimento de que para fazer palhaçada não é preciso ofender ninguém. “Quando você faz uma piada racista, mais uma vez você está propagando um discurso de ódio. Dizem: ‘Ah, eu estava só brincando’. Acho que somos inteligentes o suficiente para fazermos piadas que não ofendam os outros”, destaca. “Eu não quero que as pessoas riam de mim porque eu sou preta. Quero que riam porque eu sou engraçada. Quando eu estou apresentando e tem crianças pretas, é muito lindo de ver”, diz.
No picadeiro
Aos 40 anos, Ana Luíza viveu em 2019 um dos melhores anos da carreira. Ganhou dois prêmios Bela Cena, viajou pelo Brasil, fez turnê pela Europa e levou para muita gente o que ela sabe de melhor: muita palhaçada. “O meu pai faleceu no início do ano, e eu entrei em uma crise de que não era engraçada, que eu não devia fazer piada após a morte dele. Depois, eu viajei bastante, devo ter ficado uns três meses só em Brasília. Isso me fortaleceu muito, de alguma forma me tirou do luto do meu pai”, conta.
A explicação para o talento dela é familiar. “A minha família é bem gaiata. Vem de berço”, explica. Filha de nordestinos, a brasiliense diz que, desde pequena, percebeu ser diferente dos outros. “Eu sempre estava fazendo piada. Eu sou de gêmeos; então, eu gosto muito das pessoas. Eu tenho uma tia que sempre dizia que eu seria artista”, lembra.
A menina desengonçada e sem jeito começou, assim, a fazer graça de si mesma. “Eu sou muito alta, e o meu pé é muito pequeno. Então, eu sou uma pessoa que cai muito. Depois de cair tantas vezes, eu não tinha mais aquele pudor, fazia graça disso”, revela. “Além disso, eu sou deficiente física. Tenho paralisia em um lado. A minha qualidade é a desqualidade, é uma habilidade muito boa”, brinca.
A vocação para o teatro a levou a cursar artes cênicas na Universidade de Brasília (UnB), ao mesmo tempo em que fazia geografia. “A minha mãe falou para eu terminar geografia, dei aula durante 8 anos. Eu peguei dois tiroteios em colégios e disse: ‘Não vou morrer dando aula’. E, na sequência em que eu pedi exoneração, a gente aprovou um projeto de manutenção de grupo de teatro da Petrobras, e as coisas foram dando certo”, recorda.
Mas não era exatamente as artes cênicas que ela estava procurando. “O teatro tem um glamour, as pessoas são muito perfeitas, corpos esbeltos, e eu não me identificava muito com essa perfeição”, explica. Foi então que ela conheceu a palhaçaria, juntou-se com dois amigos que também não se encaixavam e fundaram a Colapso. Além disso, ela passou por vários grupos que levam alegria para crianças em hospitais. “Foi uma escola, porque o hospital é um picadeiro constante”, compara. Hoje, além da Colapso, Ana Luíza faz parte da Andaime Cia de Teatro, do Cabaré da Nega e tem o espetáculo solo Madame Froda.
Especial
Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/historiasdeconciencia.