Empresas passam a custear viagens de funcionárias que querem abortar nos EUA
Imagine uma mulher do Texas que, após três semanas de atraso na menstruação, descobriu estar grávida. Ela não quer ter um filho agora. Até alguns meses atrás, ela poderia simplesmente ir a uma clínica e fazer um aborto de modo seguro e legalizado.
No entanto, desde setembro, as regras no Texas mudaram. Se algum médico ajudá-la a encerrar a gravidez após seis semanas de gestação, poderá ser processado na Justiça e pagar uma multa de ao menos US$ 10 mil.
Uma saída é buscar o aborto em algum estado vizinho, onde a prática segue liberada. E algumas empresas dos EUA passaram a ajudar nisso. Companhias como Apple, Yelp e Citigroup passaram a custear a viagem delas a outras estados americanos onde o aborto segue legalizado.
A Yelp, por exemplo, anunciou no começo de abril que as despesas de funcionárias e seus parceiros que precisem ir a outro estado para abortar serão reembolsados pelo plano de saúde corporativo, como se fosse um tratamento qualquer. Os gestores da empresam que tem 200 funcionários no Texas, não serão informados sobre a utilização do benefício.
Antes dela, o Citigroup, que tem 65 mil funcionários nos EUA, 8.500 deles no Texas, adotou medida similar, que inclui gastos até com passagens aéreas.
A Apple, que tem instalações no Texas, também entrou na questão. Em setembro, o CEO Tim Cook disse aos funcionários que o plano de saúde da empresa cobriria as despesas de funcionárias que precisarem viajar a outros estados para abortar, segundo o jornal The New York Times. Também disse que a companhia analisava como poderia ajudar na batalha jurídica contra a nova lei texana.
Já os aplicativos de transporte Uber e Lyft prometeram cobrir os gastos legais de motoristas que sejam processados por ajudar mulheres a abortar no Texas. A regra permite que qualquer pessoa que tenha ajudado de alguma forma no procedimento seja processada. Assim, pode sobrar para o motorista, mesmo que ele nem saiba qual a finalidade da viagem da passageira.
A lei não determina que o Estado tome medidas para investigar abortos, mas estimula os cidadãos a fazer isso: qualquer pessoa pode entrar na Justiça para processar terceiros envolvidos em um procedimento, mesmo que não os conheça. Se ficar provado que houve ação ilegal, o denunciante pode receber um bônus de US$ 10 mil. Críticos da lei dizem que isso cria um modelo de caça a recompensas, para ampliar a pressão sobre médicos e clínicas.
Nos últimos anos, o Texas passou a atrair empresas de tecnologia por oferecer custo de vida mais barato, na comparação com a Califórnia. Por outro lado, o estado, sob comando republicano, tem adotado leis mais duras em questões de comportamento.
Para as empresas, além da questão do bem-estar das funcionárias, há a preocupação de que muitas delas decidam ir morar em outros estados, ou nem queiram disputar vagas em locais que restringem a prática.
Os EUA vivem uma crise de falta de profissionais em várias áreas. Com a sobra de vagas, trabalhadores têm mais poder para decidir onde trabalhar e mais tranquilidade para deixar posições em que não se sintam bem. Em um movimento chamado de “Great Resignation”, mais de 4,4 milhões de pessoas pediram demissão de seus postos só em fevereiro deste ano.
“Queremos ser capazes de recrutar e reter funcionários onde quer que eles queiram viver, disse Miriam Warren, chefe de diversidade da Yelp, ao New York Times. “A capacidade de controlar sua saúde reprodutiva, e se e quando você quer expandir sua família, é completamente fundamental para ter sucesso no ambiente de trabalho.”
A decisão das empresas também deve valer para outros estados que adotarem restrições. Na quinta (28), o Legislativo do estado de Oklahoma aprovou uma lei similar à do Texas, que ainda aguarda sanção do governador. O estado adotou também outra lei, que entra em vigor em agosto e prevê multa de até US$ 100 mil e pena de dez anos de prisão para quem realizar aborto.
O aborto foi liberado nos EUA por uma decisão da Suprema Corte de 1973, no caso que ficou conhecido como Roe vs. Wade, baseado no direito constitucional à privacidade. Os juízes da época (não havia nenhuma mulher na corte) consideraram que não caberia ao Estado cercear uma questão de foro íntimo.
Em 1992, a corte atualizou o posicionamento e adotou o conceito de viabilidade fetal: as mulheres podem abortar sem restrições até o momento em que o feto não seria capaz de sobreviver fora do útero, o que tende a acontecer geralmente após 22 semanas de gestação. No entanto, não houve consenso sobre quando isso aconteceria de fato, o que abriu caminho para que, nos últimos anos, estados adotassem regras locais cada vez mais restritivas.
Em setembro de 2021, uma lei estadual do Texas passou a impedir o procedimento a partir de seis semanas de gestação, momento em que muitas mulheres ainda nem descobriram que estão grávidas. A lei texana considera que o feto é viável se o coração dele já estiver batendo.
A questão deverá ser resolvida de novo pela Suprema Corte neste ano, até outubro, quando o ano jurídico atual termina. O tribunal analisa a legalidade de uma regra criada no Mississippi, em 2018, que barra a prática após a 15ª semana de gestação, exceto em emergências médicas ou má-formação do feto, mas não em casos de estupro.
Assim, a Corte poderá colocar fim à onda atual de restrições, confirmar a validade das medidas ou até mesmo rever a liberação de 1973. Como o colegiado tem hoje maioria conservadora, defensores do aborto temem uma decisão contra o procedimento, que não é garantido por lei.
No Brasil, o aborto é um crime previsto no Código Penal, com pena de 1 a 3 anos para a gestante e de 1 a 4 anos para o médico ou autor do procedimento. A Folha entrou em contato com Apple, Citigroup e Uber, que também atuam no país, para perguntar mais detalhes sobre as ações feitas nos EUA e se haveria algum plano de ajudar as mulheres no Brasil da mesma forma, mas elas não quiseram comentar.
Para Juliana Reis, roteirista e criadora do projeto Milhas pelas Vidas das Mulheres, este debate ainda está distante do Brasil, mesmo que mulheres estejam em cargos de liderança de várias multinacionais. “Quando chega na hora dos direitos sexuais, essa compatibilidade de gêneros cede a outros imperativos, como de cunho religioso ou conservador. O nosso progressismo é limitado”, avalia.
Iniciado em 2019, a Milhas pelas Vidas arrecada doações de pontos de programas de fidelidade, além de doações em dinheiro, para ajudar brasileiras a viajarem a países da América Latina onde a prática foi legalizada, como Argentina e Colômbia. O projeto já recebeu mais de 5.500 pedidos de ajuda, e conseguiu atender em torno de 850 mulheres.
Reis conta que, mesmo com apoio, é comum ver mulheres que pediram ajuda terem medo de embarcar para fazer o aborto, por conta das pressões sociais e falta de apoio emocional da família. “Isso acontece tanto com mulheres pobres, de periferia, sozinhas, quanto com mulheres casadas, que têm pós-graduação, que se sentem totalmente desamparadas”, comenta.
“Hoje nossa referência não são os Estados Unidos, onde avança o retrocesso. Nossa referência é Argentina, Uruguai, Chile, México. O Brasil está virando uma ilha retrógrada”, avalia ela. “Dificilmente a gente pode esperar que as empresas brasileiras vão passar a considerar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres um tema importante”, considera.
Rafael Balago, Folhapress