Colocando nos trilhos o futuro da Europa
UE quer tornar as viagens ferroviárias mais atraentes para passageiros e companhias, até o fim da década. O trem Connecting Europe Express começa em Lisboa uma jornada visando unir o continente pelas ferrovias.Ao sair de Lisboa nesta quinta-feira (02/09), iniciando sua jornada de 20 mil quilômetros através do continente europeu, o Connecting Europe Express se torna um embaixador das aspirações e desafios ferroviários da UE. O primeiro deles surgirá dentro de alguns dias de viagem, quando um trem inteiramente novo será necessário na fronteira com a França, onde muda a bitola ferroviária.
O tamanho dos trilhos é uma das mais antigas dores de cabeça para a circulação de trens através das fronteiras europeias. É apenas parte do desafio mais amplo que enfrenta a Europa, onde dezenas de redes ferroviárias se desenvolveram de forma independente e ainda interagem de forma restrita, com uma confusão de regras para passageiros, sistemas de bilheteria e horários.
A UE agora acredita que isso está mudando: a legislação continua a forçar as redes nacionais mais teimosas a competirem; mais viajantes procuram o transporte ferroviário como alternativa ao voo; projetos-piloto estão testando novas tecnologias de digitalização e automação.
“A ferrovia tem grandes vantagens”, diz Carlo Borghini, diretor executivo do projeto de investimento da UE Shift2Rail, que financia muitos desses projetos. “Mas se a ferrovia for subutilizada devido a um número de barreiras que ainda estão presentes, então claramente essas vantagens serão perdidas.”
O Connecting Europe Express tem como objetivo destacar essas vantagens. Uma viagem de um mês que requer três trens separados para cruzar 26 países é o carro-chefe do que a UE declarou “Ano Europeu do Trem”.
Bruxelas acredita que é a hora certa para alardear uma de suas mais antigas formas de transporte público. Sua futura estratégia de mobilidade, lançada em 2020, exige uma ampla mudança para o transporte ferroviário. Até o final da década, a UE quer dobrar a quantidade de ferrovias de alta velocidade em todo o continente, com foco na conexão de grandes cidades.
O mais recente pacote legislativo do bloco para transportadoras ferroviárias também entrou em vigor em 2021. As novas regras têm como objetivo aumentar a concorrência no setor, permitindo, por exemplo, que operadoras sediadas num país-membro operem em todo o bloco.
No entanto, são as metas climáticas europeias que mais impulsionam o otimismo atual. O transporte ferroviário é responsável por menos de 1% dos gases do efeito estufa relacionados aos transportes na UE. As viagens aéreas, em comparação, representam 3,8%, diferença destacada por Bruxelas e contabilizada pelo maior número de passageiros que viajam por terra.
“Vemos gente ansiosa por reduzir seu impacto nas mudanças climáticas, querendo uma alternativa para voar por distâncias cada vez maiores”, afirma o especialista em ferrovias Mark Smith.
Movendo-se à noite
Smith, que dirige o site The Man in Seat 61, está acompanhando de perto o desenvolvimento dos trens noturnos da Europa. Outrora um marco no cenário ferroviário da Europa, as rotas noturnas diminuíram, à medida que a ferrovia de alta velocidade reduzia o tempo de viagem e as companhias aéreas baratas faziam grandes incursões.
Agora, poucos anos depois que grandes transportadoras como a Deutsche Bahn venderam seus vagões-leito, os trens noturnos estão vendo um ressurgimento. A companhia ferroviária austríaca ÖBB iniciou sua nova rota Viena-Amsterdã em meados do ano e planeja abrir mais três rotas até 2023, incluindo conexões com Paris e Roma. A empresa diz que suas rotas noturnas atuais costumam estar lotadas e que espera dobrar o número de passageiros até 2025.
Protagonistas menores também estão se envolvendo: a operadora sueca Snalltaget abriu uma rota noturna entre Estocolmo e Berlim: a startup holandesa European Sleeper faz parceria com empresas ferroviárias existentes para construir sua própria rede de trens noturnos. Sua primeira rota noturna entre a Bélgica e Praga está marcada para iniciar operação em abril.
Competindo com companhias aéreas de baixo custo
O presidente executivo da ÖBB, Andreas Matthä, afirma que a agência precisa de condições de mercado mais justas para competir com os voos baratos, principalmente a isenção de impostos sobre vendas em trens internacionais, um benefício já desfrutado por voos internacionais.
Smith também acredita que as vantagens de mercado estão distorcendo a concorrência. “Não é um campo de jogo nivelado. E é preciso haver ação para nivelar o campo de jogo, de modo que o transporte aéreo e ferroviário possam competir de forma justa. No momento, é o modo de viagem menos favorável ao clima que está obtendo todas as oportunidades.”
Resta saber se os países da UE estão dispostos a enfrentar as populares companhias aéreas baratas, que foram duramente atingidas pela pandemia. O bloco recentemente propôs acabar com a isenção de impostos sobre os combustíveis do setor, como parte de seu roteiro Fit for 55, visando atingir suas metas climáticas para 2030. Uma revisão de seu esquema de comércio de emissões,igualmente prevista no roteiro, também forçaria as companhias aéreas a pagarem mais.
Os trens transportam atualmente 7% dos viajantes da UE e cerca de 18% das mercadorias, números que podem aumentar se os voos ficarem mais caros. Alguns Estados-membros estão considerando lançar suas próprias iniciativas. Os legisladores franceses votaram este ano pela proibição de alguns voos de curta distância. Os políticos alemães debatem uma medida semelhante na campanha eleitoral para o Parlamento.
Fazendo conexão
Se os passageiros e as empresas quiserem mudar voluntariamente para o trem, a experiência terá de ser melhor, pleiteiam especialistas como Smith e Borghini. Eles argumentam que unir horários e procedimentos de emissão de bilhetes diferentes pode tornar as viagens mais suaves e reduzir atrasos. A criação de um conjunto comum de regras e direitos dos viajantes deve colocar mais poder nas mãos dos passageiros.
O investimento é considerável, porém há mais países interessados. Borghini diz que vários membros da UE estão pensando em usar os fundos de recuperação da pandemia do bloco para a expansão ferroviária. “Com as indústrias de aviação e automobilística também correndo para desenvolver tecnologias sustentáveis, a chance dos trens é agora”, argumenta Borghini. “Se você quer ter um conceito diferente de mobilidade, mobilidade sustentável, precisamos fazer isso nesta década. Caso contrário, outras soluções virão.”