A regulação da aviação civil em tempos de incertezas
De modo imprevisível e sem tempo para maiores avaliações, a aviação civil se viu obrigada a buscar flexibilizações regulatórias para atravessar a pandemia. Quando o pior cenário da crise estiver superado, não se sabe em que situação estará o setor e se ele irá se acomodar sem reformulações mais definitivas – de modo a retornar a patamares anteriores de regularidade e municípios atendidos.
No período, foram liberadas regras para fretamento de voos, retiradas exigências para o carregamento de itens de saúde e feitas adaptações para o uso de aeronaves para carga, pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Além disso, as condições exigidas das empresas de aviação comercial nas relações com consumidores foram alteradas por período determinado, que se encerra neste ano. Depois disso, voltam as regras do cenário anterior à pandemia.
“Nosso maior entrave a partir de agora, será evidentemente a dificuldade de retomar a atividade econômica. As viagens a negócios alavancavam o tráfego e agora, com o efeito do trabalho remoto, temos ainda mais incertezas se isso voltará com força total”, explica Alessandro Marques de Oliveira, professor do Departamento de Transporte Aéreo do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), especialista em regulação do setor. “Mudanças regulatórias teriam o papel de aumentar a confiança dos investidores de novos entrantes no mercado, ao sinalizar melhora no ambiente. Talvez a principal nesse sentido seja a revisão de slots nos aeroportos”, completa.
É nesse período de transição incerta – em que não há noção completa do que será prioritário ao fim da pandemia – que a agência reguladora do setor inicia os trabalhos da agenda estabelecida para os próximos dois anos. Esta agenda nos ajuda a entender para qual direção deve caminhar a regulação em um futuro próximo. Revisões de políticas devem se somar ao programa Voo Simples, lançado pela Anac em conjunto com o Ministério da Infraestrutura (MInfra) em outubro passado como maior ofensiva para dinamizar o setor.
A iniciativa tem medidas direcionadas à aviação geral, que inclui táxi-aéreo, operações aeroagrícolas (para dispersão de agrotóxicos e fertilizantes, por exemplo) e transporte de carga – 97% do total de aeronaves registradas no país são desse setor, segundo o governo. O objetivo do programa seria gerar “melhorias estruturantes para o setor com foco na simplificação de procedimentos, alinhamento às regras internacionais, aumento da conectividade e fomento a um novo ambiente de negócios”.
De certa forma, voos regulares seriam impactados por algumas das mudanças, especialmente no que se refere à expansão da aviação para o interior. Estão previstas revisões legais como para alterar a taxa de fiscalização da aviação civil (TFAC), estabelecida pela lei de criação da Anac (11.182/2005). Atualmente, há 348 situações geradoras ativas para o pagamento por concessionárias, empresas aéreas e outros agentes fiscalizados pela agência. A última alteração tarifária aconteceu em 2017.
Agora, a expectativa é realizar um enxugamento dos chamados fatos geradores e atrelar a tarifa ao nível de complexidade do serviço – hoje, elas variam de R$ 6,86, por cancelamento de voo por empresa aérea, a R$ 611.980,12, em homologação de aeronave de maior porte. O programa prevê tratar desse tema em Medida Provisória (MP) a ser enviado ao Congresso. Finalizado pelo MInfra, os termos dela estão atualmente em discussão interministerial na Casa Civil.
A mesma MP também deve incluir alterações no Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), disposto pela Lei 11.182/2005, retirando diferenciações entre os serviços aéreos privados e públicos – o primeiro trata do uso reservado ao proprietário, enquanto o segundo abrange voos comerciais e regulares. Com isso, devem cair exigências sobretudo para os serviços públicos.
Além disso, pela proposta, seriam revisados também a Lei 6.009/1973 e o Decreto 89.121/1983, que tratam sobre utilização e exploração pelos aeroportos. O intuito é que a Anac passe a regulamentar as diferentes tarifas do setor. A agência já sinalizou que pode abrir discussão sobre os valores incidentes em passageiros e aeroportos na sua agenda, que já prevê estudo sobre taxas no setor de carga.
Dentre os 63 itens sendo tocadas no Voo Simples – outros podem ser sugeridas e incluídos rotineiramente –, 23 foram concluídos até agora, como a simplificação dos processos de registro de aeronaves importadas, o que reduziria o tempo de compra de um veículo; e a junção dos processos de autorização prévia de construção com o cadastro de aeródromos, colocando para uso pistas na Amazônia Legal em locais de difícil acesso.
Também sob o interesse de garantir mobilidade em regiões pouco atendidas, está a pretensão de criar um marco para a chamada aviação anfíbia no Brasil, permitindo o uso de aeródromos fluviais. Esse tema está em fase inicial, de estudo de impacto regulatório. Nesse sentido, outras mudanças previstas são a modernização do processo de certificação de empresas de pequeno porte, até o fim de 2022. O intuito seria atrair entrantes no mercado.
Embora não tenha impacto direto para a maior parte da demanda pelo transporte aéreo comercial, formada por passageiros de voos regulares, o incremento da conectividade para o interior por empresas da aviação geral é interessante para, em última instância, movimentar a aviação comercial como um todo.
Mudanças na aviação geral podem afetar mercado
Essa estratégia não é nova, mas não tem sido simples de se concretizar. Há três anos, as regras para aeródromos de cidades com menos de 200 mil habitantes foram alteradas, porque exigências severas de investimento e segurança inviabilizavam a atuação de empresas menores. As mudanças deram margem para que a Gol fizesse parceria com a TwoFlex, para levar passageiros de municípios deste porte até centros atendidos pela companhia, em trajetos de menos de duas horas.
De início, em 2019, era possível aos passageiros adquirir bilhete de qualquer destino operado pela Gol, com escala em Belém e Manaus, para seis cidades no Norte; com escala em Cuiabá, chegava a quatro municípios. Na época, TwoFlex era a maior operadora de táxi-aéreo no Brasil e havia conquistado a certificação de operação complementar pela Anac, podendo atuar como aérea regular em parceria com outras companhias.
Ela operava trechos do programa Voe Minas Gerais, criado em 2016 pelo governo estadual, conectando cerca de 20 cidades do interior ao aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte. O sonho era que o modelo pudesse cobrir mais de 300 cidades (dentre as 853 do estado) – sendo que havia apenas 86 aeródromos públicos, segundo a Anac –, aumentando o fluxo de passageiros em voos regulares e, assim, receitas para o setor. Mas a iniciativa foi encerrada em 2019, após críticas por gastos com subsídios.
Meses após o início da parceria com a TwoFlex no Norte e Centro-Oeste, a Gol firmou parceria com o governo do Ceará, semelhante à empreendida por Minas Gerais. A ideia era realizar voos entre Fortaleza e oito cidades do interior, mas, mal as rotas começaram, foram encerradas pela pressão da pandemia no setor no ano passado. Além disso, em maio de 2020, a Azul anunciou a compra da empresa por R$ 123 milhões e a renomeou para Azul Conecta. A frota de 17 aeronaves com capacidade para nove passageiros cada demonstra que o interesse é, justamente, levar a destinos de menor demanda e acesso para grande porte.
É também esse o limite de assentos que a Gol e a Voepass têm à disposição para conectar a capital de Mato Grosso com municípios do interior do estado, desde fevereiro em parceria com a mato-grossense Asta. Porém, desde abril de 2021, com o endurecimento da transmissão de Covid-19, a empresa suspendeu as rotas e está realizando apenas táxi-aéreo.
Na pandemia, com a redução da oferta de voos nos aeroportos e até da exclusão de alguns destinos do atendimento das companhias, a procura por essa modalidade aumentou expressivamente – em especial, em feriados prolongados e quando do arrefecimento de medidas restritivas nos estados. O congestionamento de aviões e jatos particulares nos aeroportos de Trancoso e Porto Seguro, na Bahia, às vésperas do Revéillon passado ilustram que, para alguns setores da aviação, a pandemia não foi negativa para os negócios.
Em 12 meses encerrados em abril, a empresa de táxi-aéreo Tropic Air Aviation viu a demanda por voos fretados quadruplicar, em relação ao mesmo período anterior, segundo divulgou. “Vivemos em 2020 o melhor ano da empresa, sem sombra de dúvidas. E o cenário deve ser ainda melhor em 2021”, disse Gustavo Ricci, diretor da empresa, no comunicado.
A procura começou com a tentativa de brasileiros retornarem para casa em meio ao cancelamento de voos, seguida por viagens a trabalho e férias. Em dezembro, o aumento na receita por reserva de voos executivos por meio do aplicativo da empresa Flapper foi de 194% em relação ao mesmo mês em 2019.
Operando na aviação geral, essas empresas têm mais de 2 mil aeródromos disponíveis para pousos e decolagens, enquanto na aviação regular esse número não chega a 200. A disponibilidade deve aumentar ainda mais com a simplificação do registro de pistas privadas.
Além disso, em agosto passado e com validade de dois anos, a Anac permitiu que empresas de táxi-aéreo que não faziam voos regulares ofertem bilhetes para até 15 voos por semana em aeronaves de no máximo 19 assentos. Os operadores não estão isentos de atender a Resolução nº 400, que prevê deveres em relação aos consumidores, como o reembolso do valor pago caso o serviço não seja prestado.
A condição pode servir de teste sobre como esses serviços irão se comportar no que se refere a garantir maior oferta de voos no Brasil, mas a continuidade para além da pandemia recebeu críticas durante a discussão aberta sobre a nova agenda regulatória da Anac, em que se questionou a dificuldade de acompanhamento sobre cumprimento de direitos dos passageiros e também verificação sobre o cumprimento de parâmetros já seguidos pelas companhias aéreas regulares.
Combustível, slots e Direitos do Consumidor
Além do que também consta no programa Voo Simples, a Anac tem uma agenda com outros 12 temas a serem endereçados até o final de 2022. São neles que a agência deve se debruçar no período, sem grandes desvios de prioridades, ainda que eventualmente possa considerar a validade de outras questões.
Entre eles, há a revisão da Resolução nº 338, em vigor desde 2018 e, que regulamenta o procedimento de alocação de horários de chegadas e partidas em aeroportos coordenados e de interesse, os chamados slots. A Anac estabelece que um aeroporto se torna coordenado quando ele está exposto a alto nível de saturação das infraestruturas aeroportuária e aeronáutica (como o uso excessivo das pistas de pouso e decolagem), sendo necessárias regras mais rígidas para delimitar o uso das estruturas. Enquanto a condição de aeroporto de interesse é estabelecida quando a infraestrutura ainda não está saturada, mas o terminal tem importância estratégica. A maior parte dos voos no Brasil se dá com a definição de slots.
Agora, a ideia é rever os parâmetros de alocação dos slots para mitigar concentração de mercado e incentivar a concorrência – a primeira fase do estudo já foi concluída pela Anac. Pela Resolução atual, a agência monitora o devido uso dos slots, em que é necessário manter regularidade mínima de 80% e desvio de até 15 minutos para a manutenção do direito ao uso no ano seguinte. Com a pandemia e o cancelamento de voos, foram abonados cancelamentos de slot no cálculo de regularidade para obtenção de direitos históricos pelas companhias nas próximas temporadas. Esse waiver vence em outubro.
Caso a regra estivesse valendo e as empresas não quisessem perder seus horários, elas teriam de continuar voando com aviões vazios. Empresas têm pedido para a prerrogativa ser estendida até a normalização dos voos e para que a revisão da regra aconteça apenas após esse período. “Uma mudança definitiva, no meio de uma pandemia e a curto prazo, considerando a falta de previsibilidade de demanda, pode gerar distorções enquanto a visão de futuro não estiver definida”, escreveu a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear) nas contribuições à agenda. O pedido foi indeferido, mas a proposta de revisão deve ser disponibilizada apenas no terceiro trimestre.
Relevante para a aviação comercial, há ainda previsão do processo de certificação operacional para aeroportos internacionais, em relação a requisitos exigidos para o processo, providências administrativas e consequências administrativas ou sanções previstas em caso de descumprimento. Aqui, tratam-se do Regulamento Brasileiro da Aviação Civil nº 139 e da Resolução nº 371, da Anac.
Além disso, devem ser avaliados normativos que regulam as tarifas de armazenagem e de cargas aéreas, com o objetivo principal de simplificar a regulação de preços e promover competição no transporte de cargas. Nesse tema, é pedido também que sejam revisados planos de segurança para estocagem nos aeroportos, mas essa abordagem não deve ser feita no momento
Por fim, outro destaque relevante é para o planejamento de estudos e avaliação sobre edição de normativo, que poderia ser apenas da Anac ou incluir a Agência Nacional de Petróleo (ANP), para prever dispositivos que tratem especificamente das condições de acesso aos parques de abastecimento de aeronaves nos aeroportos.
A intenção seria incluir procedimentos para aperfeiçoar as atuais regras de acesso e a implementação de medidas adicionais, como “a desverticalização entre a operação do PAA e a distribuição de combustíveis ou a regulação de preços de acesso às infraestruturas de dutos e hidrantes”, conforme descreve a agência.
Essa é uma discussão que tem sido cara para o setor, após embates sobre favorecimento de acesso à infraestrutura a certas distribuidoras. Em janeiro, a Anac negou recurso da operadora do Aeroporto de Guarulhos e da distribuidora de combustível Raízen sobre penalidade aplicada por dificultar o acesso aos novos interessados em explorar os pontos de distribuição de combustível no aeroporto. Além da determinação do acesso, foi aplicada multa de R$ 3,48 milhões. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica também investiga a situação e a Superintendência-Geral do órgão chegou a recomendar a condenação de distribuidores e concessionária, em setembro passado.
Não prevista para esse período de dois anos, a revisão da Resolução nº 400 foi questionada na discussão sobre a atual rodada de propostas e deve retornar em breve. Isso porque, conforme o próprio texto dela prevê, está estipulada a reavaliação após cinco anos de vigência, completados em 2022. A Anac adianta que deverá considerar os efeitos da flexibilização imposta pela pandemia na análise futura.
Entre pontos de alteração demandados por uma companhia aérea estão: alteração do prazo de protesto por danificação e violação de bagagem; desregulamentação sobre parâmetros para bagagem de mão, como acontece em outros mercados; desobrigação de assistência material em caso de cancelamento por força maior; mudanças nas obrigações por alteração na malha aérea durante baixa temporada; exigência de documentos para corrigir nome em passagens; excludente de responsabilidade e extensão de prazo para compensação por preterição em caso de troca de aeronave.
Essas questões ainda não estão na pauta, mas, constantemente são alvo de debates e podem entrar em breve nas reformulações a serem propostas pela Anac – já que as medidas a cada ciclo tendem a levar em consideração percepções do mercado e dos agentes envolvidos.