Aviação regional perde demanda crescente sem interiorização
Dentre os 5 .570 municípios brasileiros, cerca de uma centena atualmente conta com voos regulares, sendo que há períodos em que o alcance é maior ou menor. Considerando as cidades mais bem atendidas, pela variedade de rotas e também disponibilidade de voos semanais, uma minoria está na região amazônica. Observando a malha da aviação nacional, os nove estados que compreendem a Amazônia Legal – todo o Norte brasileiro, além de Mato Grosso e parte do Maranhão – comportam volume consideravelmente menor de ligações em direção ao restante do Brasil, mas também dentro da própria região.
Dentre os cerca de 2,5 mil aeródromos registrados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), um terço está nessa região, mas a maior parte não conta com voos comerciais fixos ou mesmo não está habilitada para recebê-los. A questão é que justamente a face do país menos acolhida pelo transporte nos ares é a que mais dependeria dele. A crise sanitária gerada pela pandemia do novo coronavírus evidenciou um problema antigo que é a dependência da aviação aérea para o provimento de serviços essenciais e deslocamentos de emergência, já que, para boa parte dos estados, o transporte rodoviário não é uma alternativa abrangente e o fluxo hidroviário não é eficiente quando se corre contra o relógio.
Recentemente, algumas adaptações foram feitas para atenuar a situação, como as mudanças feitas pela Anac em abril passado para simplificar regras para a regularização de pistas privadas de pouso e decolagem na Amazônia Legal, retirando a exigência de que elas tenham tido aval de construção pela agência. O principal objetivo era facilitar o atendimento a comunidades isoladas, principalmente de saúde indígena.
Indo além da subsistência, também é muito necessário que a população tenha acesso à aviação no período posterior à pandemia. “A atuação regional pode não ser tão impactante em termos de lucratividade em comparação com as rotas de maior fluxo. Mas sua importância é patente em integração territorial”, afirma Ana Paula Camilo, professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), especialista em transporte aéreo.
Embora a escassez esteja mais evidenciada nesse recorte do Brasil, ela é um exemplo da situação da aviação regional como um todo, que ainda não é explorada em sua capacidade máxima. Um indicativo disso é o índice de voos comerciais de curta distância frente ao total dos deslocamentos. No Brasil, essa média está em 12%, frente ao padrão de 30% em outros países, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear).
“Há uma enorme demanda reprimida, e precisamos expandir a aviação regional pensando não apenas em interesse para negócios ou turismo, mas como uma rede em que os terminais não competem entre si, mas se conectam”, explica Roberta de Roode Torres, consultora em infraestrutura aeroportuária. Na tentativa de interpretar o porquê de haver áreas no Brasil mais ou menos atendidas pela aviação comercial, a explicação mais óbvia é s diferença de demanda. O caminho oposto pode funcionar melhor, isto é, ofertas atrativas gerarem a demanda.
Apesar de complexos de serem resolvidos, os entraves para a expansão da aviação regional são conhecidos. Especialmente em regiões em que não há quaisquer voos regulares dentro de um raio de centenas de quilômetros, a inadequação da infraestrutura dos aeroportos é, frequentemente, o mais robusto deles. Por isso, a melhora nesse aspecto costuma ser ponto focal das estratégias de incentivo à aviação regional. Atualmente, o Ministério da Infraestrutura mantém a meta de que 205 municípios contem com aeroportos recebendo voos regulares e, para tanto, aposta fichas de que melhorias em aeroportos serão capazes de atrair empresas aéreas.
Na Amazônia, investimentos já estão em curso para obras em 25 aeroportos no interior de Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso e Pará, e há a promessa de R$ 380 milhões em investimentos por meio de parcerias público-privadas (PPP) estudadas para aeroportos de oito municípios do interior do Amazonas: Parintins, Carauari, Coari, Eirunepé, São Gabriel da Cachoeira, Barcelos, Lábrea e Maués. Todos já possuem terminais, mas o volume de voos é escasso. Além disso, há licitação prevista para construção do novo terminal de passageiros do Aeroporto de Oiapoque, próximo à fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa. Em fevereiro, a Infraero foi contratada para realizar projetos e obras em aeroportos amazonenses de Maués, Itacoatiara e Fonte Boa para que recebam pousos e decolagens.
Isso é especialmente interessante para empresas que desejam interligar a região, o que hoje não é simples. Iniciada em 2013, a Map, atualmente subsidiária da Voepass, é voltada para a Amazônia. Neste ano, são 11 municípios com rotas regulares e a expectativa é que, com infraestrutura aeroportuária melhorada, sejam atendidos mais seis no mínimo duas vezes por semana – vários, estão entre os beneficiados pelas obras públicas.
“Estamos falando de mudanças simples, como sinalização, não se trata de construir novos terminais, por exemplo. Queremos fazer uma rota passando por Lábrea, mas não é possível porque o aeroporto local só suporta um voo por semana por falta de estrutura de acompanhamento meteorológico”, diz Eduardo Busch, CEO da Voepass. A empresa percebeu que, ao colocar dois voos semanais no mesmo município, a demanda em ambos aumenta dada a possibilidade de fazer viagens curtas. Na região, um bilhete aéreo pode significar um trajeto que levaria dias feito em poucas horas, mas frequentemente essa opção não existe ou é oferecida apenas por táxi-aéreo.
A definição mais decisiva sobre os investimentos em aeroportos está marcada para esta quarta-feira (7/4), quando acontece a sexta rodada de concessão aeroportuárias, processo que se desenrola desde 2011 com o intuito de interiorizar a aviação do país. Nessa leva, serão 22 aeroportos, divididos em três blocos. A expectativa do governo é que os investimentos para a concessão pelo prazo de 30 anos gire em torno de R$ 6,6 bilhões, em terminais pelos quais passaram, em 2019, cerca de 24 milhões de passageiros.
Em se tratando de Amazônia, essa nova leva deve ser significativa, já que está em disputa o bloco Norte I com aeroportos de sete municípios, incluindo os das capitais Boa Vista, Manaus, Porto Velho e Rio Branco; além disso, o bloco Central inclui terminais de Palmas e de Imperatriz, município da porção amazônica do Maranhão. Em 2022, a sétima rodada irá leiloar outro bloco do Norte, mira nos aeroportos paraenses de Altamira, Belém, Carajás, Marabá, Santarém, além do de Macapá.
O prato está cheio para quem aposta que a melhora da infraestrutura aeroportuária irá alavancar, de uma vez por todas, a aviação regional tanto na Amazônia quanto em outras partes do país. “Quando entram novos operadores de aeroportos de peso no mercado, o que é esperado para o próximo leilão de concessões, é interessante para eles aumentarem a movimentação, então também há uma articulação para trazer as empresas aéreas”, diz José Ricardo Botelho, diretor-executivo da Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta). Esses planos de investimentos são mais alguns dentre outros que existiram nos últimos anos visando aumentar o acesso da população ao transporte aéreo e que, em parte, acabaram descartados.
Em 2015, a Lei 13.097/15 criou o Programa de Desenvolvimento da Aviação Regional (Pdar), pretendendo subvencionar rotas regulares para aeroportos que atendessem até 600 mil passageiros por ano ou 800 mil na Amazônia, com redução de tarifas aeroportuárias e subsídios para metade dos bilhetes em aviões de até 120 passageiros – o que foi visto, na época, inclusive como incentivo à Embraer, principal fabricante de aeronaves desse porte. Em corte de gastos, o programa acabou suspenso sem nunca ter sido regulamentado.
Além disso, a existência de aeroportos em boas condições não é, por si só, suficiente para atrair empresas aéreas interessadas em operar regularmente no local – ou, por vezes, a dificuldade não é a situação básica do aeródromo. Caso interessante para entender essa lógica é o do aeroporto internacional criado para atender o Parque Nacional da Serra da Capivara, que ocupa vaga da Unesco de Patrimônio Cultural da Humanidade.
Distante 576 quilômetros da capital piauiense Teresina, o aeroporto de São Raimundo Nonato – terminal de passageiros que, do alto, forma a pintura rupestre símbolo do local – foi inaugurado em 2015, após cerca de R$ 20 milhões desembolsados e 12 anos de obras e expectativas de que o terminal fomentaria o turismo no Parque, já que o aeroporto mais próximo era o de Petrolina, em Pernambuco, a 350 quilômetros.
O problema é que ele não tem estrutura alfandegária para voos internacionais e somente meses depois ele recebeu o primeiro voo comercial – por cerca de um ano, a empresa de táxi-aéreo Paquiatuba fazia viagens em aeronaves de até nove passageiros entre Teresina e o aeroporto, mas a rota não existe mais. Em 2019, o governo estadual planejava a construção de um terminal de abastecimento para servir como espécie de parada técnica entre as capitais do entorno e ver se seria destravada a oferta de voos comerciais.
O acesso a combustivel é um dos fatores a gerar desinteresse de empresas aéreas em operar em determinados municípios. “Em muitos destinos, não compramos diretamente de um grande distribuidor, mas de outro fornecedor que faz esse repasse. Isso encarece a operação”, diz Busch, da Voepass. Próximo dos grandes terminais, a rede de abastecimento de combustível funciona de modo em que as refinarias estão relativamente próximas de aeroportos, então o produto é entregue por dutos para distribuidoras que operam nos terminais – no caso do aeroporto internacional de Guarulhos (SP), o querosene de aviação é transferido da Refinaria Planalto Paulista (Replan), em Paulínia (SP), a maior do país. A única refinaria que a Petrobras mantém no Norte é a Isaac Sabbá (Reman), em Manaus, que produz combustível de aviação e será vendida no processo de desinvestimento que a empresa empreende neste ano.
Tantos impeditivos não anulam completamente o interesse econômico que a aviação regional desperta. Há empresas interessadas nessa fatia do mercado. “As marcas regionais cumprem uma função estratégica, mas frequentemente subordinada, servindo de alimentadoras das linhas principais das grandes companhias aéreas nacionais. Isso seria natural, se não fosse o poder que as grandes exercem sobre as regionais”, afirma a professora Camilo, da UEMS. A diversificação de frotas, incluindo aeronaves com menor capacidade de passageiros, é parte da capilarização que torna possível levar o transporte aéreo para o interior.